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Roberta Sá
Que belo estranho dia pra se ter alegria
Uma cantora com a musicalidade, o conhecimento e o gosto de Roberta Sá, e com sua precoce maturidade técnica, não precisa de motivo para cantar. Canta porque gosta, o que gosta (música brasileira!) e para quem gosta. Pronto.
Mas neste seu segundo CD, Que belo estranho dia pra se ter alegria, Roberta tem também, e nitidamente, outra intenção: a de mostrar que a sua (nossa) tão amada canção brasileira continua viva, atual, interessante. Roberta parece querer dar a sua visão do que seria o contemporâneo na música popular brasileira. Ambição que, evidentemente, vem espalhada nas canções, sem comprometer a fluidez desinteressada delas.
Não por acaso, pinça o tÃtulo de um verso da discreta obra-prima do universo lÃrico e estranho do pernambucano Lula Queiroga, a bossa nova “Belo estranho dia de amanhãâ€. A melodia, cheia de curvas, e a harmonia cheia de dissonâncias carregam uma letra que mostra a intenção lÃrica do disco, e da música brasileira segundo Roberta Sá: “O argumento ficou sem assunto/Vai ter mais tempo pra gente ficar junto/Vai ter mais tempo pra enlouquecerâ€. Nesse dia apocalÃptico em que “os polÃticos amanhecerão sem vozâ€, a canção se utiliza tão bem do vocabulário e das coisas contemporâneas _ “NotÃcias perderão todo controle dos fatos/Celebridades cairão no anonimato/Palavras deformadas/Fotos desfocadas vão atravessar o Atlântico/Jornais sairão em branco/E as telas planas de plasma vão se dissolver†_ que serve perfeitamente para Roberta mostrar que, sim, a música brasileira está aà e que uma jovem de vinte e poucos anos pode se expressar através dela.
Na sua redefinição do contemporâneo, Roberta regrava um velho samba como “Alô fevereiroâ€, feito em 1972 pelo injustamente esquecido Sidney Miller, sucesso naquele ano na voz de Doris Monteiro. No arranjo do produtor Rodrigo Campello, há praticamente um século de história da música de rua do Rio de Janeiro: do maxixe da introdução, dos contrapontos da flauta e do saxofone (ambos de Eduardo Neves) à maneira de Benedito Lacerda e Pixinguinha, ao balanço de samba carnaval que vai se transformando num funk carioca, para depois voltar ao samba.
No diálogo com a tradição da música brasileira, Roberta recupera um velho sucesso de Linda Batista, “Interessa?†(de 1951), e exerce uma de suas especialidades como cantora: emprestar sua juventude a velhos sambas buliçosos, como aquele que a tornou conhecida, “A vizinha do ladoâ€, de Dorival Caymmi.
E mostra que domina tão bem o universo tradicional da música brasileira que debuta como compositora (em parceria com Pedro LuÃs) justamente num tradicionalÃssimo samba-choro, “Janeirosâ€, conduzido pelo violão de 7 cordas de Rodrigo Campello e percussão de Marçalzinho.
Contradição? Não, como vai se ver mais adiante, quando Roberta trata da mesma forma contemporânea sejam sambas modernÃssimos de autores mais velhos ou sambas retrôs de autores mais jovens.
Ou alguém tem dúvida de que “Cansei de esperar vocêâ€, belÃssimo samba clássico de Dona Ivone Lara e Delcio Carvalho (pinçado do repertório do incontornável grupo Fundo de Quintal) e o inédito samba de roda “Laranjeiraâ€, do santamarense Roque Ferreira, não se encaixem perfeitamente a música brasileira de hoje?
Ou que “Samba de um minutoâ€, de Rodrigo Maranhão com insuspeitado sabor de Ataulfo Alves, e o tradicionalÃssimo “ Novo amorâ€, do também jovem compositor carioca Edu Krieger não sejam igualmente expressão da música brasileira de hoje, das jovens noites da Lapa de hoje, apesar do jeito antigo?
Em comum, para além de serem sambas de hoje, há o frescor da voz de Roberta Sá e a busca não da modernidade pela modernidade ou da tradição pela tradição, mas do belo, da forma melhor de dizer aquelas melodias e palavras, das invenções e surpresas em cada faixa. Em “Novo amorâ€, por exemplo, o bandolim virtuoso e moderno de Hamilton de Holanda dá novas cores e climas ao samba, transformando-o em modinha, em valsa, até em fado.
A dupla Pedro LuÃs e Carlos Rennó mandou dois petardos, a explosiva list song nordestina “Fogo e gasolina†(que Roberta canta com Lenine) e o “Samba de amor e ódioâ€, perfeitamente integrados no espÃrito do disco, o de buscar a expressão mais atual para gêneros da música brasileira.
Igualmente como que transposto imediatamente das ruas (no caso as de Salvador) para nossos ouvidos está “Mais alguémâ€, de Moreno Veloso e Quito Ribeiro, uma marcha-rancho com insuspeitado sabor de canção tropicalista no arranjo de Rodrigo Campello _ em mais uma visão pessoal de Roberta de uma maneira contemporânea de se fazer música brasileira.
E se esse “Que belo estranho dia pra se ter alegria†começa em forma de oração, “O pedidoâ€, bela canção meio mântrica de Junio Barreto, acaba em festa. “Girando na rendaâ€, um irresistÃvel samba de roda de beira de praia de Pedro LuÃs, tem a sua simplicidade harmônica vestida luxuosamente pelo Pife Muderno, o grupo de sopros e percussão de Carlos Malta, e diz bem das intenções do segundo CD de Roberta: “Reza quem é de rezar/Brinca aquele que é de brincadeira/Quem é de paz pode se aproximar/Hoje é festa pruma noite inteiraâ€, diz a letra, mais cristalina impossÃvel.
Braseiro, primeiro CD de Roberta Sá em 2004, era um cartão de visita, uma declaração de intenções de uma cantora para com a música brasileira. Que belo estranho dia pra se ter alegria, que dá continuidade à sua parceria com o selo MP,B (Universal Music) e com o produtor Rodrigo Campello, é o mergulho dessa cantora, cada vez mais amadurecida, no agitado mar de seus contemporâneos, quer nos temas, quer nas formas, quer nos parceiros. O resultado é belo e estranho como bela e estranha sempre foi a música brasileira.
Hugo Sukman
Agosto/2007