Apresse-se, porque, com a crise de energia, este pode ser o último CD eletro-pop-rock do Brasil. E, se o for, será, sem dúvida, um grand finale. Se não, um grande começo, a grande estréia da mais compacta big band do paÃs. Assim, os últimos serão os primeiros, e este, um exemplar pioneiro na techno-discografia autóctone, criado por músicos, no lugar dos habituais DJs.
Eletro Fluminas é um registro definitivo da electric era e seus prótons, nêutrons e elétrons sonoros, desde seus primórdios, nos anos 60/70, até este inÃcio do século XXI, no qual ela atinge sua plenitude ao mesmo tempo em que divisa, paradoxalmente, seu crepúsculo.
É como se, do mesmo modo com que nossos antepassados descobriram o fogo, o trio, em meio a uma escuridão que se anuncia, houvesse redescoberto a luz elétrica, puxando brasileiramente um gato, unindo alguns fios desencapados, no interior de uma caverna, num curto-circuito extremamente contemporâneo, em que o primitivo e o tecnológico, o industrial e o artesanal, a vanguarda e a nostalgia, se convergissem num choque cultural harmonioso.
Sim, eles viajam no tempo, por centenas de territórios musicais, litorais auditivos vários, oferecendo ao turista-ouvinte um guia breve da história do pop-rock, reprogramado ou para se auto-destruir após a audição, ou para ser lançado ao espaço sideral, como souvenir de uma civilização que acreditou no progresso, mergulhou na loucura e, nos laboratórios-porões de hoje, fez sua sÃntese para o amanhã.
Esta experiência logrou amalgamar, por exemplo, Led Zeppelin e Alceu Valença (“Black dog†fundida a “Sol e Chuvaâ€), Naná Vasconcellos batucando com John Bonham num rock-baião progressivo percussivo que cede a vez para o encontro de Naná com Jurim Moreira (“Loopiando Naná e Jurimâ€) e Leo Gandelman que, por sua vez, imprime seu Oriente Médio muito acima da média num fraseado das Arábias.
Para começar a gira, em “Balaôâ€, é erigido um eletro-templo, onde, na faixa seguinte ("Stay Together"), irá baixar o espÃrito do Portishead de cabeça para baixo. E, deste modo, vão se incorporando: a trilha de um film noir digital (“Espuma dos diasâ€); George Harrison revisitado num “Beware of darknessâ€, que nunca esteve tão adequado quanto nas trevas feéricas de agora; um Caetano andróide-andrógino recebendo uma Dalva de Oliveira com charme replicante (Ela e eu), e daà por diante, a se incluir a presença de um cão cibernético, cujo médium é um cavalo (“Cavalo do Cãoâ€).
O claro-escuro marca sua presença nesta sinfonia barroca, apocalÃptica, cosmopolita, numa alucinação lúdica e saudável, através da qual é possÃvel embarcar num delÃrio seguro, como a aventura de uma montanha russa ou de
um trem fantasma.
Não é por acaso que uma das faixas se chama “Zappa from Heavenâ€. Também incorporado ali, o velho monstro Frank só poderia encarnar em sua edição tropical: Márcio Lomiranda, tão seu descendente quanto um similar estrangeiro, Trent Reznor (Nine inch nails). Lomiranda conhece bem o riscado de ser arriscado. Passeia pelo experimentalismo com o desembaraço e a autoridade de quem transitou pelo mainstream sem perder o prumo e o rumo de sua nave. Já pôs hit na boca de Marina Lima (“Nightie nightâ€, recriada no CD), de quem foi tecladista e arranjador, bem como de Alceu, Ney Matogrosso, Cássia Eller, Zélia Duncan, Sandra de Sá, Fat Family, Paula Toller, Leila Pinheiro, Ivan Lins, entre outros, além de produzir trilhas para a TV Globo. Pode, então, Zappear pelos canais de seu equipamento, sem perigo de se tornar hermético. Tinha que vir de Divinópolis, terra de Adélia Prado, este pai de quatro filhos, doidão certinho, como Zappa e a poetisa. Ali, os ETs vivem disfarçados de gente comum.
E o mineiro e seus minérios musicais encontraram no pernambucano de Caruaru, Paulo Rafael, sua cara metade xifópaga, numa alquimia de congada e maracatu, centro-oeste e nordeste com cara de mundo todo. Da linhagem de Jimmy Page, Jeff Beck e Rori Gallagher, Rafael, antes arcanjo ou arcangaceiro do som e da fúria, converte a harpa em guitarra e viola e lança riffs de Raf, com o mesmo conhecimento de causa do parceiro. Produtor, arranjador e guitarrista de artistas como Zé Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Gal Costa, Lobão, Kleiton e Kledir, Marina e artistas que-tais, ele pisa o asfalto da própria estrada com a segurança de quem trilhou sendas, fendas e fenders diversas e diversificadas, entre as quais, a belÃssima trilha sonora do filme “O Baile Perfumadoâ€. Rock’n roll agreste hard que arde. Seu lampião brilha também na banda baiana, Lampirônicos, cujo CD, produzido por ele, conta, em três faixas, com a co-produção de Carlinhos Brown.
A dupla atesta ainda seu faro aguçado na descoberta de uma das melhores cantoras do Hemisfério Sul: a jovem, bela, sensual, dramática, luminosa cavernosa, Taryn Szpilman, herdeira legÃtima de Nina Hagen, Marianne Faithful, Nico e demais doces malditas. Membro da quarta geração de músicos da famÃlia Szpilman e da terceira da famÃlia Kalnakoff, Taryn combina a maldição do Leste Europeu com a brejeirice dos Trópicos, numa mistura exótica e única, que a permite percorrer registros vocais inauditos, com interpretações repletas de nuances e surpresas. Crooner da Rio Jazz Orchestra, regida por seu pai, Marcos Szpilman, vocalista da Rio Sound Machine, a versatilidade de Taryn manifesta-se e refestela-se no patchwork rÃtmico da Eletro Fluminas.
Este é, pois, um CD pós-iluminista, engendrado por uma trinca de ases nas cyber-cavernas do obscurantismo presente, apontando uma lanterna – ou lampião - esperançosa para o futuro. Oportunamente, depois de passar por revisões transgressoras de clássicos do rock’n roll e composições próprias inéditas, ele fecha com a inocência revista de Burt Bacharach, em “What the world needs now is loveâ€. Porém, não se engane. Eletro Fluminas tem blues, techno, pop, afro, bolero... Mas é rock. E rock é rock mesmo.
Mathilda Kóvak