Um desenhista de músicas
por Juarez Fonseca
Luciano Mello classificou sua música no MySpace como “alternative, electronica, trip hopâ€. Para o bem-informado público desse meio, é possÃvel que Luciano já tenha deixado a condição de ilustre desconhecido. Mas tais palavras, cada vez mais familiares mesmo ao comum dos mortais que ouve música sem se importar com definições, ficam devendo, são limitadas quando se vai falar no trabalho do compositor de Pelotas. Em meio aos prédios centenários da histórica cidade gaúcha, ele está tão conectado com o que há de novo em música no mundo, que sua busca por texturas incomuns no aparato eletrônico é ao mesmo tempo natural e quase obsessiva. Ao lado de sintetizadores de primeira e de última geração, tem lugares especiais em seu estúdio – o Gravações Eletromésticas – para dois veneráveis pianos, um Rhodes e um Wurlitzer. Todos foram usados na gravação do segundo disco, Universo Barato, que ao contrário do primeiro (zurbE, 1999), começa agora a ter divulgação nacional. O sintetizador inaugural é um Yamaha DX27, que Luciano ganhou do pai em 1989. “Quando pedi, ele não quis me dar, achou um absurdo, mas depois comprou o que eu queria, um sintetizador programável, para que eu pudesse mexer nas texturasâ€, conta. O Rhodes também tem sua história: foi “salvo†por Luciano na casa do tecladista de um grupo de baile, que já o estava usando como... mesa de churrasco. O compositor só não está no estúdio testando sonoridades quando cuida da outra profissão, psicólogo.
Dito isso, vamos à quilo que a maioria dos jornalistas quer saber quando apresentada a um recém-chegado. Quais suas influências? E ele abre um leque com boa parte do que há de melhor hoje, deixando de citar “coisas†como Beatles e Pink Floyd, por óbvias: Björk, PJ Harvey, Nine Inch Nails, Tom Waits, Philip Glass, Laurie Anderson, Caetano, Tom Zé, “sem dúvida Fito Paezâ€. E os gaúchos Nelson Coelho de Castro (“mexeu muito com a minha músicaâ€), Bebeto Alves “(adoro esse caraâ€) e Vitor Ramil (“pela proximidade que a gente temâ€). Curiosidade: é Luciano quem costuma gravar as demos de Vitor, ambos perfeccionistas inarredáveis consumindo noites à procura do timbre perfeito. Universo Barato resulta disso também. “Não consigo trabalhar se a coisa não tiver um nÃvel altoâ€, ele resume. Nos três anos em que foi construindo e gravando o disco, junto com o também múltiplo Arthur de Faria, Luciano reuniu um “who’s who†da música feita no Rio Grande do Sul – de Léo Henkin e Fernando Pezão (ambos dos Papas da LÃngua) a Pedro Porto (da Ultramen), passando por Nico Nicolaiewsky, Marcelo Corsetti, Clóvis Boca Freire, turma que há uns bons 20 anos freqüenta mais ou menos as mesmas quebradas do pop, do jazz e algumas milongas. Sem falar no próprio Vitor, que afora os palpites é parceiro em uma canção do disco, No Floor, na qual toca piano acústico “e harpa do piano com palheta e lixaâ€, como informa o detalhado encarte.
A atenção aos detalhes chega ao ponto de Luciano reconhecer que, à s vezes, determinado ruÃdo é mais pesquisado que a instrumentação em um arranjo. Ao mesmo tempo, parece generalizar quando diz: “Sempre estudei pianoâ€. Mas é coerente. Começou menino estudando música e piano em conservatório. Lá pelas tantas, ao fim da adolescência, anunciou ao professor que queria compor. “E ele reagiu afirmando que tudo o que é bom já fora feito no século passado, o 19â€. Luciano tanto insistiu que acabou expulso do conservatório, perdendo a música clássica um concertista – e um iconoclasta. “Como sempre gostei de música experimental, em 1989 comecei a fazer música para teatro. Na época, tive uma banda de dois com um amigo, ele no violão e eu fazendo interferências eletrônicas.†Dois anos depois, abriu em Pelotas um estúdio profissional de gravação e conseguiu o primeiro reconhecimento público ao ter um clipe selecionado em um projeto da RBS TV. Em 1993, como representante no Sul do selo paulista Camerati, se aproximou do dublê de músico e radialista Arthur de Faria, para quem passou a fita demo que acabou com uma das músicas, Célio Borges, o Gaudério Lunático, entrando na programação da rádio (atual Pop Rock FM) por insistência dos ouvintes. “A música era ruim, mas graças a ela fiz o primeiro show em Porto Alegre, no Opinião.â€
Depois disso veio o zurbE, projeto de pesquisa e disco de industrial music aprovado pela Secretaria da Cultura de Porto Alegre. Luciano tem boas lembranças: “Foi um disco caseiro, gravado em meu quarto com o guitarrista Miguel Feldens, e recebeu umas boas crÃticas em São Pauloâ€. Na seqüência, outro projeto, de dois discos com Arthur (um de cada), foi finalizado mas permanece na gaveta. O de Luciano, de acid jazz, se chamaria (ou chamará) Canções com Restos de Acordes. A seleção, em 2000/2001, para o projeto Rumos Música, do Itaú Cultural, como um dos 70 escolhidos entre 1.700 inscritos, com o registro de duas canções na Cartografia da Música Brasileira e shows em São Paulo, o convenceu de que precisava se expor mais. Em 2003, começou a trabalhar na concepção de Universo Barato, considerando duas coisas: “Música eletrônica nunca foi um fim, sempre foi um meio, tenho domÃnio sobre, sempre mexi com teclados; e essa música já estava muito melhor aceita, cercada de informações e gravações. Já não torciam mais o nariz para o que eu estava fazendoâ€. Embora os fios condutores sejam quase os mesmos, entre o garoto que compunha para si próprio, trancado no quarto, e o compositor, o performer de Universo Barato, há o percurso que separa a intenção e o gesto. Luciano Mello é um músico maduro e de grande personalidade. As citadas influências são apenas isso e foram completamente metabolizadas pelo processo criativo dele.
Uma canção com ares de milonga erudita como Memória do Futuro, por exemplo, tem fagotes e clarinetas dialogando com os sintetizadores. Fantasmas em Tua Casa tem guitarras pesadas e clima sombrio. Só com piano, ruÃdos e voz maquinal, Dois Eus é meio esquizo. De repente uma marcha-rancho eletrônica com a voz grave de Nelson Coelho de Castro, Canção Tola, e uma valsa instrumental com dois pianos e acordeom lembrando trilhas fellinianas de Nino Rota, Valsa Tola. E entre as tantas canções quase expressionistas, um pop-rock praticamente “normalâ€, pronto para tocar no rádio, Casa Vaga. Elementos fundamentais na consistência do trabalho, as letras revelam um leitor meticuloso de filósofos e poetas (não por acaso Luciano está fazendo pós-graduação em Literatura Comparada). E não espere frugalidades, as idéias são complexas como antecipa a faixa de abertura, Resto Recomeço. “A casa é o ataúde/ E os ruÃdos já conheço/ Começo todo dia/ Ouvindo-me em silêncio/ RuÃdos pela casa/ Chegam pelo avesso/ A dor é a fim do dia/ O resto é recomeço/ Que som acuaria/ O cheiro do silêncio/ A casa não ilude/ Não cheira a incenso/ Não tem um móvel velho/ Ecoa em vão imenso/ Que chave abriria/ A porta do que pensoâ€. Em vez de dizer que compõe, Luciano gosta de dizer que desenha a música. É por aà mesmo: a gente pode ouvir e ver.
JUAREZ FONSECA
PS – Depois de pronto o disco, Valsa Tola ganhou letra de Vitor Ramil, agora chama-se Formica Blue e aparece no novo disco de Adriana Maciel. É a primeira cantora de Luciano, e da primeira cantora a gente nunca esquece.