Raquel Tavares vive onde o seu fado mora. No coração de Alfama. Um coração tradicionalmente ao pé da boca, na ligação mais directa aos sentimentos que se pode ambicionar.
É o Bairro que molda a voz de Raquel. É ali, ao vivê-lo dia e noite, que ela é e se sente mais fadista. Foram aquelas colectividades que a viram cantar as primeiras vezes, ainda miúda. São aquelas ruas que lhe conhecem cada passo do seu dia-a-dia. São aquelas gentes que, quer o saibam quer não, estão fatalmente ligadas a cada palavra que sai do peito de Raquel. Cada palavra que soa como se tivesse sido arrancada à sua alma, descoberta algures no mais fundo de si e trazida à superfÃcie da casa de fados para se extinguir logo em seguida. Raquel dá-lhes a maior verdade de todas: a verdade momentânea, que só é válida naquele sÃtio e naquele momento.
Não deve ficar a mais de duzentos metros da sua casa, essa outra casa, a dos fados, onde canta profissionalmente todas as noites. Tal como não deve ficar a mais de dois metros a janela da vizinha da frente que lhe pergunta ‘como é que vão as cantigas, menina?’. Tudo isto se passa nas ruas estreitas de Alfama, em que as vidas são pouco privadas e entram pelas casas do lado sem estranheza. É desse sentimento colectivo, de um povo no máximo da sua autenticidade e que tudo vive de forma excessiva, dramática e por consequência apaixonada, que a voz de Raquel se alimenta.
Raquel canta aquilo que vê, sente e cheira à sua volta, que vive diariamente. E nada lhe enche mais as medidas que as histórias reais e palpáveis escritas pela mão de Linhares Barbosa, o poeta do fado que melhor narrava as voltas do povo.
Mas se Bairro remete muito naturalmente para Alfama, aponta ao mesmo tempo para uma outra geografia. Uma geografia interior feita de outras ruas e outros becos, de outras portas e janelas, que traçam o percurso musical de Raquel Tavares. De menina que cantava por graça, a mulher que só acha graça a cantar. Este disco documenta uma série de momentos fulcrais no percurso musical da fadista. Só ela terá a chave para abrir cada um dos segredos que aqui se encerra, mas o segredo que já deixou de o ser é que Raquel Tavares, vencedora do Prémio Relevação Amália Rodrigues 2006, já não é apenas uma voz que promete muito. Aqui, em Bairro, é onde ela se começa a cumprir.
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