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Fernanda Abreu
MTV ao Vivo
SWING
Música para ver. Alguns artistas de música popular não esgotam nos setenta e poucos minutos disponÃveis em um CD toda a amplitude de sua personalidade artÃstica. Ainda que a música cumpra deliciosamente seu papel por ela mesma, é absolutamente necessário que se veja esses artistas agindo em cima do palco para que uma nova camada de sensações se agregue aos sentidos daquele som. Há quem os chame artistas de palco, mas isso é redutor, já que eles são também igualmente competentes no estúdio.
Fernanda Abreu é um desses casos. O carisma de sua música é indiscutÃvel e ela não precisa vir vinculada a imagem nenhuma para que seu entendimento se dê. Por outro lado, não é possÃvel dar conta de compreender todas as inflexões de sua personalidade artÃstica sem passar pela experiência dionisÃaca que um show seu representa.
Diante disso, estava ficando estranho que Fernanda não tivesse registrado ainda nenhuma apresentação sua em DVD a única maneira que a tecnologia pôde encontrar até agora para empacotar um show para além do teatro. Esse estranhamento acaba agora, com o lançamento deste Fernanda Abreu MTV ao Vivo. A idéia inicial era gravar a bem cuidadÃssima turnê do álbum Na Paz, lançado em 2004, e que rodou todo o paÃs. Mas veio da própria Fernanda a vontade de fazer, antes de qualquer outro registro, um acerto de contas com sua história musical até aqui.
BALANÇO
O tempo passou voando. Já se vão exatos 20 anos desde que a Blitz, banda-escola de Fernanda Abreu, se desfez de sua formação original. Outros 16 se foram desde o lançamento de Sla Radical Dance Disco Club (1990), primeiro disco dela sozinha. O álbum desligava a cantora da linguagem POP-performance-deboche-diversão da Blitz e fechava foco nas pistas de dança. A proposta sonora era nova, diferente: trazia uma linguagem de composição e arranjo baseada no sampler quando este ainda era um verdadeiro ET nos estúdios daqui.
Sla 2 Be Sample (1992) e, principalmente, Da Lata (1995), os álbuns que vieram na sequência, aprofundaram a experimentação eletrônica da estréia, apimentando as programações com levada brasileira de pandeiro, bumbo e caixa. A combinação gerou uma identidade forte, um estilo Fernanda Abreu de fazer música. As letras, cheias de citações ao cotidiano carioca, vincularam profundamente o trabalho da cantora a sua cidade.
Lançado em 1997, Raio X deu conta de abrir um pouco esse leque territorial. Usou como recurso a escalação interestadual dos convidados especiais: além dos amigos do Rio, músicos de outros estados marcaram presença como o baiano Carlinhos Brown, os pernambucanos Lenine, Chico Science & Nação Zumbi ou paulista André Abujamra. Eram cariocas e não cariocas fazendo música de Fernanda Abreu. Já nos anos 2000, Entidade Urbana (2000) e Na Paz (2004) representaram o desejo de firmar definitivamente uma identidade universal ao seu estilo.
FUNK
Gravado em duas apresentações no Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes, centro do Rio, o pacote de CD, DVD e programa de TV traz o cuidado habitual da cantora no quesito visual. Ela e o artista plástico Luiz Stein, seu marido e parceiro em capas de discos e cenários de shows, foram buscar nos bailes funk as referências para colocar em cima do palco. Armaram uma parede com caixas de som enormes empilhadas no fundo da cena todas emprestadas da turma do Furacão 2000. O efeito é certeiro.
Não é de hoje que Fernanda faz, pela via do funk carioca, a ponte entre a Zona Sul e o Morro. Ela chegou a ser chamada de Embaixatriz do Funk no livro Batidão: uma História do Funk, do jornalista Silvio Essinger. Não é para menos. Se pegarmos a ficha técnica de seu primeiro disco solo, de 1990, já consta lá a presença maciça do DJ Marlboro, fazendo scratches em várias das faixas.
Hoje, Marlboro e suas dançarinas dominam tanto os bailes da periferia quanto as pistas de dança dos clubes da alta classe, mas o funk ainda é menosprezado por parte da elite cultural. Na tentativa de ajudar a incluir o gênero no sagrado panteão da MPB, Fernanda faz seu recorte sobre o assunto e o reúne num pot-pourri deste Fernanda Abreu - MTV ao Vivo. Ela mapea funks de teor polÃtico e os intercala a outros, os de carga sexual, que tornaram o gênero popular. Logo adiante, induz à comparação entre estes e as antigas marchinhas carnavalescas, que também usavam e abusavam de frase de duplo sentido, provando assim que os dois gêneros pertencem à mesma árvore genealógica. Ilustrando a cena, os dançarinos do Bonde do Magrinhos, do Bonde das Fogosas e os Black Brothers fazem suas coreografias, criando uma atmosfera de baile em cima do palco.
Elemento importantÃssimo nas apresentações de Fernanda Abreu desde sempre, a dança não comparece no especial apenas pela via do funk carioca. O samba vem imponente, debaixo dos pés hábeis do coreógrafo João Carlos Ramos. Já os mineiros do Brother Soul trazem para o DVD a linguagem da dança soul. O grupo começou em Belo Horizonte em 1983 e só agora, via Fernanda Abreu, tem a chance de ganhar projeção nacional.
E o baile segue animado, com um hit atrás do outro: A Noite, Jorge de Capadócia, Você pra mim, Kátia Flávia, Veneno da Lata, Rio 40 Graus, É Hoje. Além do DJ Marlboro, Herbert Vianna e Mart´nália (ela, só no DVD) marcam presença no projeto, dividindo com Fernanda os vocais em duas canções. O paralama acompanha a anfitriã em Um Amor, um Lugar, balada que ele mesmo compôs. A sambista de Vila Isabel aparece numa roda de guitarra e pandeiro, na faixa Tudo Vale a Pena, de Pedro LuÃs. Além disso, duas músicas inéditas entraram no pacote: Baile Funk e Dance Dance, ambas de Rodrigo Maranhão.
Mas a maior surpresa para os fãs mais fiéis de Fernanda foi a inclusão da clássica A Dois Passos do ParaÃso (em uma levada doce, cool, romântica completamente diferente da humorada versão original). É que, desde que o final da Blitz, em 1986, a cantora nunca mais havia encostado no repertório de sua antiga banda. Mas agora o momento é outro: segura do que construiu nessa década e meia, Fernanda pode trazer de volta o passado que bem quiser, sem medo nenhum de deixar de ser, mesmo que por um segundo, absolutamente ela mesma.
Marcus Preto Maio/ 2006
Até que enfim a gente pode levar para casa o imperdÃvel show de Fernanda Abreu. Não perco um, todos muito bem produzidos por ela e por seu companheiro de vida Luiz Stein. Musa incontestável do Rock Brasil anos 80, ei-la, com tudo em cima, 20 anos depois do fim da Blitz, lançando diversão em estado puro no formato digital de som e imagem. E não apenas isso.
Com muito suingue e bom humor, ela faz um mapeamento da música negra brasileira, sua grande paixão, indo do samba, ao soul, ao funk velha escola, ao rap, hip hop e funk atual. Tudo isso no formato de banda, sonoridade com postura e garra de rock cheia de alma.
Toda a música de Fernanda está associada ao movimento. Ela começou a fazer dança ainda pequena e nunca subiu ao palco sem mostrar sua excelente forma. No DVD é possÃvel curti-la em sua plenitude, com coreografias criadas por ela e executadas com as backing vocals Flávia Santana e Juju Gomes e com os dançarinos convidados, Juliana e as Fogosas, Bonde dos Magrinhos, Black Brothers e Brother Soul.
Apesar de ser plural, Fernanda é a personificação da mulher carioca, um tÃtulo que os leitores do Globo Online lhe conferiram numa eleição direta em março de 2006. Do subúrbio à Zona Sul, no ensaios de escolas de samba, nos bailes funk das comunidades populares, onde chega Fernanda é bem chegada. O meio musical reconhece seu talento e determinação de sair do backing vocal da Blitz para desenvolver, ao longo de 20 anos, uma assinatura própria dentro da música brasileira. Ela é extremamente popular, num show ao ar livre na Praia de Copacabana no último primeiro de maio, 40 mil pessoas a acompanharam na maior empolgação. Ela sabe ser sofisticada de uma maneira simples que atinge todos os públicos, não tem erro.
Fernanda mostra, de uma ótica carioca, a universalidade do ritual da música e dança. "Todo mundo ao mesmo tempo/ É roda que se mexe/ Toda a Terra inteira quer balançar". É uma cultura cultivada nas noites do planeta, como anuncia ela na faixa de abertura, A noite: "A noite é negra/ E os holofotes vasculham/ Toda essa escuridão/ À procura de um lugar ideal/ Pra dançar e barbarizar". Um ritual que se repete em todos os quadrantes desta bola azul onde vivemos. ''Baile da pesada'' e a inédita ''Baile funk'' (Rodrigo Maranhão) celebram o encontro, a primeira lembrando os DJs históricos Monsieur Lima, Big Boy e Ademir, os dois últimos criadores do baile que dá nome à música, e Pedrinho Nitroglicerina. Ela fala da repressão aos bailes funks pela polÃcia do Rio e seu 'pecado mortal' de ser festa de pobre.
''Kátia Flávia'', descrita pelo texto genial de Fausto Fawcett é o perfil perfeito das gatas que reinam nos bailes funk como primeiras damas do chefão local, seja ele do movimento ou de outros tipos de contravenção. Fernanda canta na primeira pessoa, encarnando a Kátia com muita garra e movimentação. Em "Brasil é o paÃs do suinge" Fernanda nos leva a chacoalhar pelas danças da Terra Brasilis: "Vamo lá rapaziada todo mundo dançando" com o reggae e o tambor da crioula no Maranhão, carnaval na Bahia, Mangue beat no Recife e por aà vai. O Rio tem uma canção separada, "Rio 40 Graus", novamente com o texto afiado de Fausto, um diagnóstico preciso do que viver neste purgatório da beleza e do caos que tem como sÃmbolo o Cristo Redentor com as mãos para o alto.
Para recuperar o fôlego, algumas lentinhas, a começar pela nova leitura de "A dois passos do paraÃso", o clássico da Blitz. Com uma voz bem suave e tirando fora a fala do Arlindo Orlando, Fernanda nos apresenta uma velha canção como se fosse nova num contexto inteiramente diverso. "Dance dance", a inédita de Rodrigo Maranhão, fala de um encontro que ilumina a noite, um romance associado a um baile. Exclusivamente no DVD está ''Um amor um lugar'', a canção de Herbert Vianna, presente no palco para dividir a canção com ela, um momento muito bonito. Fernanda lembra que Herbert foi seu grande incentivador quando começou a carreira solo, um papel que ele cumpriu também para outros nomes, como Plebe Rude, Legião Urbana e Biquini Cavadão, prova da grandeza do Paralama mor.
Fernanda cai no samba em ''Aquarela brasileira'', o samba enredo de Mestre Silas de Oliveira para o Império Serrano em 1964, o pandeiro de Jovi Joviniano e o violão de Rodrigo Campello. E o samba permeia outras canções como ''Veneno da lata'', a canção sobre um verão muito louco que os cariocas tiveram em 1986 (ou será 1988?). Outro samba enredo, da União da Ilha em 1982, "É hoje", vira um hÃbrido de samba e funk com muito balanço e adereços na cabeça.
''Bloco Rap Rio 2006'' e o ''Bloco Funk'' são duas montagens geniais que incluem dois momentos da música negra, a dos anos 70 com Gerson King Combo, Tony Tornado, Banda Black Rio, passando por Gilberto Gil, velhas marchinhas de carnaval e o Planet Hemp de "Legalize já".
No Bloco Funk, com a presença no palco do DJ e produtor Marlboro, ela parte de um sample de "O morro não vez" por Elis Regina para um pot-purri muito bem amarrado do Funk Brasil, pegando de clássicos como o "Rap da felicidade" a mais recentes como "Ela só pensa em beijar". ''O MTV ao vivo'' de Fernanda Abreu é o que há. A branquinha de alma negra arrasou.
Jamari FrançaMaio/2006